Em dezembro de 1945, enfrentamos Evandro Lins e Silva que em parecer divulgado na imprensa havia atacado crupiês e carteadores, não poupando os demais empregados dos cassinos e casas de jogos.
Na época, Evandro tinha 33 anos e prosseguia na carreira jurídica que o levaria em 1961 ao cargo de procurador-geral da República; em 1962 a chefe da Casa Civil da Presidência da República; em 1963 a ministro do Exterior e ao Supremo Tribunal Federal, onde permaneceu até 13 de novembro de 1968, quando foi aposentado pelo Ato Institucional n°5.
Na ata da reunião da diretoria do Sindicato, em 14 de dezembro de 1945, está a íntegra da carta com a resposta de Raymundo Nonato ao parecer de Evandro Lins e Silva.
A veemente reação foi também publicada na imprensa, provocando intensa repercussão. Eis a transcrição da carta do nosso 1º secretário:
“Foi estarrecido que li no Correio da Manhã, de 9 do corrente, vosso parecer apresentado à Comissão de Legislação Geral do Instituto dos Advogados com referência ao funcionamento dos cassinos e consequente amparo aos que nesses estabelecimentos usufruem o necessário para sua subsistência e manutenção de suas famílias”.
Não desejo modificar o vosso ponto de vista com referência ao fato nem ao menos tem, esta carta, outra finalidade a não ser a de contestar dois infelizes trechos de vosso parecer, que abaixo transcrevo:
“Em todos os lugares do mundo o jogo é proibido, exceção feita em alguns países para as estações climatéricas e, assim mesmo, com inúmeras restrições”.
Não é possível, portanto, argumentar-se com a necessidade das casas de jogo para dar ocupação a garçons, artistas, cozinheiros etc. O trabalho honrado dessas pessoas não se deve nivelar ao trabalho ilícito de ‘croupiers’ e carteadores. A comparação é até injuriosa e deprimente.
O problema das contribuições aos Institutos de Previdência Social, e as garantias decorrentes da legislação trabalhista, pode ser resolvido com a maior simplicidade.
Dentro dos cassinos há atividades licitas e ilícitas; às primeiras aplicam-se as normas legais; as últimas a lei não garante e nem podem permanecer, mantendo os serviços necessários ao seu funcionamento.
O que não é possível é concordar com a contravenção a pretexto de amparo a trabalhadores garantidos pela legislação trabalhista.
As leis de amparo social não foram feitas para proteger contraventores, mas para amparar os que se dedicam a atividades lícitas”.
Eis aí os trechos de vosso parecer que irei contestar e apresentar minha repulsa, repulsa de um brasileiro honrado e chefe de família cujo passado não teme confronto com a vossa honradez.
Responderei, não como diretor do Sindicato, desta classe tão vilipendiada no vosso parecer, mas como cidadão que tem sabido cumprir com seus deveres, prestando minha homenagem aos companheiros tão honrados e dignos.
Nosso trabalho é tão honrado como é o trabalho do advogado, mesmo quando tenta retirar do cárcere um criminoso nato para restituir-lhe a liberdade, oferecendo oportunidade de praticar, em breve espaço de tempo, outro crime.
Dizer-se que não estamos amparados por lei, é prova de má fé; foram atos do governo que nos enquadrou na legislação trabalhista, dando-nos direitos e deveres.
Se estes atos são ilegais, na mesma situação estão todos os demais, inclusive leis imutáveis decretadas pelo mesmo governo.
Nosso trabalho é honrado porque ele é o produto da prática de um ato de pessoas pertencentes a quase todas as camadas sociais, com especialidade as chamadas classes liberais, onde encontra-se a honrada classe dos advogados.
O confronto que possa ser feito entre o nosso trabalho e outro qualquer, não é comparação injuriosa ou deprimente, como julga V. Sª. Trabalho desonesto é o dos que atuam à margem de qualquer proteção legal e na prática de atos criminosos, como sejam os assaltantes de estradas, cavalheiros de indústria e os demais atos ilícitos praticados por delinquentes.
Nosso trabalho é honrado, porque dele retiramos o necessário para manter nossos lares, em perfeito equilíbrio econômico, educando nossos filhos e procurando amparar nossas famílias, sendo úteis à nossa Pátria.
Ainda há pouco, quando seguiu para os campos de batalha da Europa, o glorioso Exército Brasileiro levou em seu efetivo componentes desta classe e filhos nossos, os quais souberam cumprir com o dever de cidadãos dignos e patriotas.
Nesse mesmo Exército, como em vossa classe e em outras, são encontrados elementos que formaram sua inteligência e aprimoraram sua educação com o produto do trabalho honrado de seus pais, que nada mais são do que funcionários de cassinos.
Abandonasse V. Sª. a leitura das belas páginas dos livros de Rui Barbosa e penetrasse, com vossa inteligência, no mundo moderno, estou certo, jamais teria se referido com tamanho menosprezo a tantos homens cujo único crime é não possuírem um documento que ateste sua colação de grau.
Lamento o tempo perdido na elaboração do memorial a V. Sª. dirigido pelo Sindicato que me honro em ser um dos diretores.
Verifico em vosso parecer que ele foi olhado com o mesmo desprezo com que são vistos os meus companheiros, caso contrário, não teria V. Sª. a infantilidade (perdoe-me a expressão) de julgar que um problema tão complexo poderá ser resolvido no simples deslizar de vossa brilhante pena nem seria capaz de propor ao nosso governo a negação de direito adquirido por uma coletividade em mais de uma década de labor cotidiano e honesto.
Procurasse V. Sª., conhecer o assunto, em seus mínimos detalhes, e mesmo que mantivesse vosso ponto de vista jurídico contrário ao funcionamento dessas casas, jamais negaria o nosso direito, que só poderia ser-nos subtraído por um ato que fuja às mais preliminares normas de direito.
Quero ressaltar que não estou a serviço dos proprietários dessas casas. Desses senhores, só tenho recebido o pagamento de meus vencimentos.
Defendo, sim, o direito de meus companheiros e o meu próprio. Vosso parecer não causa mal estar aos proprietários, eles têm situação econômica perfeitamente sólida. V. Sª. trouxe foi o desassossego a milhares de mães, esposas, filhos e a outras tantas pessoas que dependem economicamente dos funcionários dessas casas.
Não estou abordando assunto de ordem sentimental, mas sim, mostrando o realismo duro da vida, conhecido mas não sofrido por V. Sª. Quero ainda vos afirmar que o jogo não foi implantado no Brasil pelo governo passado e continuado por este.
O que aquele fez e este continua, é retirar dessa atividade o que de bom pode ser extraído.
O jogo sempre foi praticado sob proteção de vários matizes; dessa forma, os únicos beneficiados eram os proprietários, pois seus deveres estavam condicionados às obrigações assumidas com seus protetores, obrigações estas sempre inferiores às que lhes são hoje impostas pelo Estado.
Dessa ação governamental o que se verifica é que, nós funcionários dessas casas, gozamos hoje de férias, descanso semanal, direito a indenização por despedida injusta, auxílio pecuniário em nossas enfermidades, aposentadoria e estamos organizados em sindicato de classe. Deseja V. Sª. ver milhares de compatriotas perderem essas garantias e muitos deles voltarem a aumentar o número de contraventores?
Desde nosso enquadramento na legislação trabalhista temos procurado e provado que bem merecíamos este ato de justiça.
Nosso Sindicato é, para nós, um padrão de honra; lá temos iniciado campanhas que poderão ser transcritas nos anais de qualquer classe, por exemplo: a campanha contra o analfabetismo; o Natal do nosso Expedicionário, quando enviamos através do Exmo. Sr. Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio cheques para a ajuda aos que se batiam em defesa da nossa Pátria nos campos da Itália; além da nossa visita aos feridos que, regressados da luta, estavam internados no Hospital Central do Exército”.
O protesto público de Raymundo Nonato contra o parecer de Evandro Lins e Silva prosseguiu com a menção a outras campanhas de cunho social realizadas pelo Sindicato em favor dos associados e seus familiares. A manifestação de repulsa finaliza com a seguinte frase:
“Julgando ter-me estendido em considerações capazes de melhor esclarecer os homens de boa fé, reafirmo a V. Sª. os protestos não condensados no conteúdo desta missiva, mas expressos na revolta de um homem honrado e digno, um simples funcionário de cassino”.
Em dezembro de 1945, o Brasil era presidido por José Linhares, que, na qualidade de presidente do Supremo Tribunal Federal, havia substituído Getúlio Vargas, deposto em 29 de outubro daquele ano. O governo Linhares encerrou-se em 31 de janeiro de 1946.
As dramáticas consequências da proibição dos jogos, para os trabalhadores em cassinos e estabelecimentos de jogos de azar, foram atenuadas com a edição do Decreto-Lei nº 9.251/46, assinado pelo presidente Dutra, que movido pelos argumentos do nosso Sindicato determinou aos empresários a responsabilidade pelo pagamento das indenizações aos seus empregados:
“Art. 1º – Não se aplica aos empregados dos estabelecimentos a que se refere o Decreto-Lei nº 9.215, de 30 de abril de 1946, os quais, em virtude da cessação do jogo, hajam sido dispensados, o disposto no art. 486 da Consolidação das Leis do Trabalho, assistindo-lhes, porém, haver dos respectivos empregadores uma indenização nos termos dos arts. 478 e 497 dessa Consolidação”.